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23.11.09

Adiamento

Eu já disse que, Pessoa por Pessoa, eu prefiro Álvaro de Campos? Na verdade, nem é mera preferência, eu praticamente ignoro Alberto Caeiro e Ricardo Reis... Acabei de ler "Adiamento" e cada vez mais tenho certeza da minha preferência. E olha que ultimamente ando sem muitas certezas... Enfim... Olha isso!



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível, mas hoje não...
Não, hoje nada, hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

31.10.09

Porque eu prefiro poesia à auto-ajuda...


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
...
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
...
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
...
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
...
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
...
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
...

(Trechos de "Tabacaria", de Álvaro de Campos)

13.8.09

Desejo - Victor Hugo

Aqui está uma das mais belas poesias, na minha opinião. E a beleza está na simplicidade dela.

Muita gente já conhece, pois foi tema de uma propaganda de final de ano da EPTV - Rede Globo, mas a poesia já existia antes da Globo. Juro! rsrsrs

.
"Desejo, primeiro, que você ame,
e que, amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer
e esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
mas se for, saiba ser sem desesperar.
.
Desejo também que você tenha amigos que,
mesmo maus e inconsequentes, sejam corajosos e fiéis,
e que pelo menos em um deles você possa confiar sem duvidar.
.
E porque a vida é assim, desejo ainda que você tenha inimigos,
nem muitos, nem poucos, mas na medida exata para que, algumas vezes,
você se interpele a respeito de suas próprias certezas.
E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
para que você não se sinta demasiado seguro.
.
Desejo, depois, que você seja útil, mas não insubstituível.
E que nos maus momentos, quando não restar mais nada,
essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.
.
Desejo ainda que você seja tolerante,
não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
mas com os que erram muito e irremediavelmente,
e que fazendo bom uso dessa tolerância, você sirva de exemplo aos outros.
.
Desejo que você, sendo jovem, não amadureça depressa demais,
e que, sendo maduro, não insista em rejuvenescer,
e que, sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e é preciso deixar que eles escorram por entre nós.
.
Desejo por sinal que você seja triste,
não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra que o riso diário é bom,
o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.
.
Desejo que você descubra, com a máxima urgência,
acima e a despeito de tudo, que existem oprimidos,
injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
.
Desejo ainda que você afague um gato,
alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
erguer triunfante o seu canto matinal,
porque, assim, você se sentirá bem por nada.
.
Desejo também que você plante uma semente,
por mais minúscula que seja,
e acompanhe o seu crescimento,
para que você saiba de quantas muitas vidas é feita uma árvore.
.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano coloque um pouco dele
na sua frente e diga "isso é meu",
só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
.
Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
por ele e por você,
mas que se morrer, você possa chorar sem se lamentar,
sofrer sem se culpar.
.
Desejo por fim que você, sendo um homem,
tenha uma boa mulher,
e que, sendo uma mulher,
enha um bom homem
e que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte,
e quando estiverem exaustos e sorridentes,
ainda haja amor para recomeçar.
.
E se tudo isso acontecer,
não tenho mais a te desejar.

27.7.09

Da minha tristeza
Eu faço poesia
Prefiro ser feliz
A ser poetisa
(Detesto minha poesia)
E se amanhã eu me pego sozinha
Sem descer para jantar
Sem apetite, sem dormir
Sem sonhar
Meio humana
Meio trágica
Meio diazepam
Resgato algo de novo (de novo)
E me levo pra dançar...
.
(Se não há créditos, é meu.)

23.3.09

A EXCOMUNHÃO DA VÍTIMA


I
Peço à musa do improviso
Que me dê inspiração,
Ciência e sabedoria,
Inteligência e razão,
Peço que Deus que me proteja
Para falar de uma igreja
Que comete aberração.
.
II
Pelas fogueiras que arderam
No tempo da Inquisição,
Pelas mulheres queimadas
Sem apelo ou compaixão,
Pensava que o Vaticano
Tinha mudado de plano,
Abolido a excomunhão.
.
III
Mas o bispo Dom José,
Um homem conservador,
Tratou com impiedade
A vítima de um estuprador,
Massacrada e abusada,
Sofrida e violentada,
Sem futuro e sem amor.
.
IV
Depois que houve o estupro,
A menina engravidou.
Ela só tem nove anos,
A Justiça autorizou
Que a criança abortasse
Antes que a vida brotasse
Um fruto do desamor.
.
V
O aborto, já previsto
Na nossa legislação,
Teve o apoio declarado
Do ministro Temporão,
Que é médico bom e zeloso,
E mostrou ser corajoso
Ao enfrentar a questão.
.
VI
Além de excomungar
O ministro Temporão,
Dom José excomungou
Da menina, sem razão,
A mãe, a vó e a tia
E se brincar puniria
Até a quarta geração.
.
VII
É esquisito que a igreja,
Que tanto prega o perdão,
Resolva excomungar médicos
Que cumpriram sua missão
E num beco sem saída
Livraram uma pobre vida
Do fel da desilusão.
.
VIII
Mas o mundo está virado
E cheio de desatinos:
Missa virou presepada,
Tem dança até do pepino,
Padre que usa bermuda,
Deixando mulher buchuda
E bolindo com os meninos.
.
IX
Milhões morrendo de Aids:
É grande a devastação,
Mas a igreja acha bom
Furunfar sem proteção
E o padre prega na missa
Que camisinha na lingüiça
É uma coisa do Cão.
.
X
E esta quem me contou
Foi Lima do Camarão:
Dom José excomungou
A equipe de plantão,
A família da menina
E o ministro Temporão,
Mas para o estuprador,
Que por certo perdoou,
O arcebispo reservou
A vaga de sacristão.
.
.
.
Autor: Miguezim de Princesa